sábado, 4 de setembro de 2010

Jovem Sidarta e o Buda - Hermann Hesse

 

Sidarta é uma das obras mais lidas de Hesse. Rica em metáforas, continua a fascinar a juventude pelos temas universais com os quais se identifica. Insatisfeito com a educação religiosa e as respostas que recebe de seus mestres, Sidarta afasta-se do lar paterno, acompanhado do amigo Govinda, para buscar o sentido da vida; enfrenta duras provas até chegar à reveladora iluminação final.

No começo, unem-se a um grupo de ascetas (samanas), e com eles aprendem a sair

do corpo, triunfar sobre a dor, o sofrimento, a fome e a sede; a meditar e a controlar a respiração; sair do próprio eu e conservar-se no não-eu. Mas, sempre vinha a hora em que o circuito do eu se fechava e impunha-se a eles.

Frustrado, Sidarta compreendeu que todos esses exercícios eram modos de fugir da tortura do eu, para encontrar breves instantes de fuga e esquecimento – o que qualquer beberrão podia também obter através da bebida. Percebeu que regressava sempre de novo ao mundo da ilusão e tudo voltava a ser como antes: distante da sabedoria e da salvação, quanto um feto no ventre da mãe.

Cônscio de que gastara seu tempo, sem alcançar a meta, viu que aprendera apenas isto: “Existe sim, uma única sabedoria, que se acha em toda parte – É o Atman, que está em mim, em ti e em qualquer criatura” – diz ele a Govinda.

Procuram então o Buda [o Iluminado], que alcançara o conhecimento supremo e o Nirvana, libertando-se da turva torrente das personificações (encarnações). Govinda, após ouvir a doutrina, decide seguí-la, mas, o amigo, não. Esse trecho marcante, em que Sidarta expressa suas dúvidas ao Buda, é o que se lê abaixo:

Sidarta – Hermann Hesse

“Ao primeiro clarão da madrugada, um dos mais velhos monges adeptos do Buda atravessou o jardim, a fim de convocar os que desejassem procurar abrigo na doutrina. Queria vestir os neófitos com os trajes amarelos e ensinar-lhes os conhecimentos básicos, bem como as obrigações dos discípulos do primeiro grau.

Eis senão quando Govinda, o fiel companheiro de Sidarta, como que desarraigado, abraçou-o mais uma vez despedindo-se e entrou no séquito dos noviços. Sidarta, porém, vagueou pelo bosque, entregue aos seus pensamentos.

Foi nesse momento que Gotama, o Augusto, cruzou-lhe o caminho. O jovem saudou-o reverentemente e, quando notou o olhar bondoso, sereno, do Buda, encheu-se de coragem. Pediu ao Venerável que lhe desse licença para falar. E com um aceno silencioso, o Augusto anuiu.

E Sidarta começou:

- Ontem, ó Majestoso, coube-me em sorte ouvir a tua maravilhosa doutrina. Junto com meu amigo, vim de longe, a fim de conhecê-la. E agora meu amigo aderiu aos teus discípulos, abrigando-se na tua proximidade. Eu, porém, hei de reiniciar a minha peregrinação.

- À vontade – tornou o Venerável, cortesmente.

- Minhas palavras são talvez excessivamente audaciosas – continuou Sidarta -, mas não quero separar-me do Augusto, sem ter-lhe comunicado, com toda a franqueza, os meus pensamentos. Consentiria o Venerável em prestar-me atenção por mais um instante?

Silencioso, o Buda mais uma vez deu anuência.

- Há uma coisa, ó Venerabilíssimo – prosseguiu Sidarta -, que despertou em mim especial admiração, logo que conheci tua doutrina. Nessa doutrina, tudo fica completamente claro. Tudo é demonstrado. Tu mostras o mundo sob a forma de uma corrente perfeita, jamais e nenhures interrompida, corrente eterna, constituída de causas e efeitos. Nunca, em parte alguma, isso se percebeu com tamanha nitidez, nem tampouco foi exposto tão irrefutavelmente.

“Realmente os corações de todos os brâmanes deverão vibrar de alegria, quando seus olhos enxergarem o cosmo através de tua doutrina, esse cosmo que forma um conjunto inteiriço, sem lacunas, límpido como cristal, não dependente nem do acaso nem dos deuses. Se o mundo é bom ou mau, se a vida em seus confins é sofrimento ou prazer, essa pergunta pode ficar sem resposta.”

“Pode ser que aquilo tenha pouca importância. Mas a unidade do mundo, o nexo existente entre os acontecimentos, o fato de todas as coisas, tanto as grandes como as pequenas, estarem incluídas no mesmo decorrer, na mesma lei das causas do devir e do morrer… tudo isso, ó Augusto, ressalta luminosamente na tua excelsa doutrina. Mas, nessa mesma doutrina, há um único lugar em que tal unidade e lógica das coisas estejam interrompidas.

“Por uma minúscula lacuna penetra na unidade desse mundo um elemento estranho, novo, que antes não existiu, que não pode ser mostrado nem comprovado. Refiro-me à tua tese acerca da possibilidade de superarmos o mundo e alcançarmos a redenção. Ora, esse pequeníssima lacuna, essa brechazinha, basta para destruir e liquidar toda a unidade e eternidade da lei cósmica. Perdoa-me a audácia de ter feito esta objeção.”

Silencioso, impassível, escutara Gotama. A seguir falou o Homem Perfeito, na sua voz clara e delicada:

- Ouviste a doutrina, ó filho de brâmane, e sinto-me honrado por teres meditado profundamente a seu respeito. Encontraste nela uma lacuna, uma falha. Continua a refletir sobre ela. Permite-me, porém, ó moço ávido de saber, que te advirta do emaranhamento das opiniões, sejam elas lindas ou feias, sensatas ou estúpidas.”

“Qualquer um pode agarrar-se a elas e também refutá-las. Mas a doutrina que ouviste de minha boca não é nenhuma opinião e não tem o propósito de explicar o mundo a pessoas ávidas de saber. Seu desígnio é a redenção do sofrimento. O que Gotama ensina é ela e nada mais.”

- Não tenhas rancor contra mim, ó Augusto – disse o jovem. – Não me dirigi a ti para discutir contigo, para provocar uma disputa em torno de palavras.

“Deveras tens razão: pouco valor tem as opiniões. Mas, com tua licença, direi mais uma coisa: não duvidei de ti em nenhum instante. Não duvidei em absoluto de que és o Buda [o Iluminado], de que alcançaste o objetivo supremo a cuja busca se encaminharam tantos milhares de brâmanes e filhos de brâmanes. Obtiveste a redenção da morte! Ela te coube em virtude do teu próprio empenho, pelo método que é teu, pelo pensamento, a meditação, o conhecimento e pela iluminação. Não a conseguiste através da doutrina!

E… eis o meu raciocínio, ó Augusto… ninguém chega à redenção mediante doutrina! A pessoa alguma, ó Venerável, poderás comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que se deu contigo na hora da tua iluminação!”

“Ela contém muita coisa, a doutrina do esclarecido Buda. A numerosas pessoas indica o caminho para uma vida honesta, afastada do Mal. Mas, há uma única coisa que não se acha nessa doutrina, por mais clara e veneranda que ela seja. Não nos é dado saber o segredo daquela experiência que teve o próprio Augusto, só ele entre centenas de milhares de homens. São esses os pensamentos e as percepções que me vieram quando ouvi a doutrina.

Por isso, hei de prosseguir na minha peregrinação, não para ir à procura de outra doutrina melhor, já que sei muito bem que não há nenhuma, senão para separar-me de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho o meu destino ou então morrer. Contudo me lembrarei freqüentemente deste dia, ó Sublime, e desta hora, na qual um santo se deparou aos meus olhos”.

Serenamente, o Buda fitava o chão. Placidamente, com perfeita impassibilidade, luzia o rosto inescrutável.

- Oxalá – disse lentamente o Venerável – que teus pensamentos não sejam erros! Que te seja permitido alcançar o teu destino! Mas, dizei-me: Viste a multidão de meus samanas forasteiro, achas realmente que seria melhor para todos eles que abandonassem a doutrina e regressassem à vida do mundo e dos prazeres?

- Longe de mim pensar semelhante coisa – exclamou Sidarta. Que eles continuem fiéis à tua doutrina e realizem os seus propósitos! Não me cumpre julgar a vida de outrem. Devo opinar, escolher, rejeitar unicamente no que se refere a mim mesmo. Nós, os samanas, procuramos a redenção do eu, ó Augusto.

“Ora, se eu fosse um dos teus discípulos, ó Venerável, poderia acontecer-me… Assim receio… que meu eu só aparentemente, falazmente, obtivesse sossego e redenção, mas na realidade continuasse a viver e a crescer, uma vez que eu teria então a tua doutrina, teria o fato de ser teu adepto, teria o meu amor por ti, teria a comunidade dos monges e faria de tudo isso o meu eu.